sábado, 2 de junho de 2012

Íon de Freitas contra o trânsito



A longa e sinuosa estrada percorrida pelo engenheiro que pavimentou a Anhanguera, concebeu o Rodoanel, abriu a Imigrantes, inventou a CET e criou a Zona azul

REPORTAGEM - EDUARDO DUARTE ZANELATO. FOTOS: MARCOS MUNIZ - 02/05/2012



Da varanda de seu apartamento, no 21º andar de um prédio no Tatuapé, Íon de Freitas observa dezenas de novos espigões. Desenvolto, o engenheiro com nome de físico discorre sobre o voraz aumento do trânsito paulistano, ainda mais intenso do que a proliferação de edifícios no bairro. Aos 89 anos, ele é especialista no assunto há quase sete décadas. Formado em 1946 pela Escola Politécnica da USP, foi contratado pelo Departamento de Estradas de Rodagem (DER) no ano seguinte. “Era uma época em que o emprego te procurava, e não o contrário”, diz. “O estado inteiro tinha apenas 47 quilômetros de estradas pavimentadas.” Foi o início de sua longa jornada em favor da fluidez e da mobilidade.
O primeiro desafio do jovem engenheiro foi concluir a pavimentação daRodovia Anhanguera – que, em 1948,ainda era de terra e terminava em Campinas. A novidade renderia a ela o título de primeira via expressa rumo ao interior. Caminhava a passos lentos, em razão, segundo Íon, do arcaico modelo construtivo, com materiais transportados em carroças com tração animal. Para piorar, o prazo era curto e a pressão, enorme: a inauguração fora agendada para 22 de abril, aniversário do governador. Para que Adhemar de Barros pudesse celebrar a data com um afago no eleitorado, Íon trato de encontrar areia e pedra na regiãode Jundiaí. Encomendou dois tratores para acelerar a obra e desafiou os peões a se superarem.“Passamos de 6 metros para 1,2 mil metros concluídos por dia”, diz, orgulhoso. Na hora da festa, faltavam mil metros a pavimentar,o que não impediu o discursodo governador. Íon assistiu de longe. E aprendeu que,na política, vale inaugurar obra inacabada.
A Anhanguera foi a primeira de uma série de estradas construídas ou modificadas com a participação do engenheiro. O mapa rodoviário do estado deve muito a ele. Íon trabalhou no DER até 1970, acumulando a atividade de professor da Poli desde 1960, período em que foiumdos protagonistasda construção da Imigrantes.Ali, computou sua primeira derrota,cujos efeitos ainda persistem.Nos estudos de viabilidade da estrada,feitosemmeados daquela década,técnicos previam grande fluxo de automóveisem vésperas de feriados efins de semana. Em razão disso, Íonqueria implantar uma terceira pista,reversível, com a função de minimizaros problemas nos horários de pico. Não foi atendido. A estrada foi inaugurada, em 1976, apenas com duas pistas, uma para subir e outra para descer. Resultado? “Hoje, o governo é obrigado a improvisar, usando a Anchieta para fazer as operações subida e descida”, diz o engenheiro.
O modelo de pistas reversíveis foi trazido dos Estados Unidos. Em 1960, ao retornar à Poli como professor, Íon foi convidado a passar seis meses no órgão equivalente ao DER no estado de Virgínia.Voltou com malas recheadas de livros sobre uma área ainda inexistente por aqui: engenharia de tráfego. Até hoje, é considerado o precursor da disciplina no Brasil. Outro modelo que Íon adaptou a São Paulo foi o anel viário. O primeiro projeto desse tipo foi elaborado sob sua batuta, em 1963 – 35 anos antes do início das obras do Rodoanel Mário Covas. O plano inicial previa dois anéis, um cortando a malha urbana e outro mais distante. O primeiro nunca foi feito; o segundo demorou tanto, e sofreu tantas alterações, que jamais desempenhou a função para a qual foi planejado.“Até hoje não entenderam qu a função do anel viário é distribuir o tráfego entre regiões, e não mantê-lo apartado da cidade”, diz, referindo-se à escassez de saídas nos trechos já em operação e à polêmica proibição de caminhões nas marginais.
Em 1971, quando o governo militar já instituíra eleições indiretas, Íon foi beneficiado pela escolha do colega Figueiredo Ferraz para a prefeitura.Também engenheiro da Poli, Ferraz compôs um secretariado igualmente técnico, avesso ao mundo político, e ofereceu a Íon a Secretaria dos Transportes. Na ocasião, tratava-se de uma pasta sem importância, que pouco fazia além de administrar as garagens que abrigavam os veículos da prefeitura. A incipiente gestão do trânsito e a administração dos transportes públicos cabiam ao governo estadual. Em dois anos à frente da secretaria, Íon fez diversas modificações. Criou o Departamento de Operação do Sistema Viário (DSV), chamando para si a responsabilidade de organizar o trânsito; regularizou os serviços de táxis, ônibus fretados e lotações; e herdou as obras do metrô, iniciadas na gestão anterior,de Paulo Maluf. “Quando assumimos, havia apenas alguns buracos no Jabaquara e muitos pernilongos”, afirma Íon. “Maluf percebeu quenão daria para inaugurar ainda em seu mandato e deixou a obra de lado.”
Maluf fora nomeado secretário estadual de Transportes pelo governador Laudo Natel e, sem jamais abandonar as ambições políticas, pediu a Íon que listasse os cem cruzamentos mais caóticos da capital. A solução, segundo o ex-prefeito, seria construir 100 viadutos em substituição aos semáforos, uma forma de dar vazão ao tráfego.“Santa ignorância”, diz, aos risos, o didático ex-secretário. “Num cruzamento, há quatro aproximações, que produzem 16 movimentos. Quando você faz um viaduto, só resolve dois: o tráfego de quem está em cima dele, indo ou voltando.”
Ainda como secretário, Íon concebeu a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), hoje uma máquina responsável por (tentar) fiscalizar e ordenar o trânsito de São Paulo.“Até então, havia a Secretaria de Obras, que apenas tapava buracos e alargava avenidas; não existia visão estratégica.” No entanto, quem tirou a CET do papel não foi ele. Em 1973, um ano antes de o metrô ficar pronto, Figueiredo Ferraz foi substituído por Miguel Colasuonno, e Íon perdeu o cargo.“Os militaresnão queriam que um técnicolevasse o mérito pela obra do metrô”,diz o engenheiro. Nos livros de história,a demissão de Figueiredo Ferraz é explicada como uma retaliação diante da frase “São Paulo precisa parar de crescer”, atribuída a ele e interpretada como afronta ao projeto desenvolvimentista defendido pelo regime. Fato é que Íon fez as malas e se mudou para Brasília, onde foi assessor do Ministério dos Transportes e do governo do Distrito Federal. De volta a São Paulo, presidiu a CET entre 1983 e 1985 e deixou de herança a Zona Azul. Em seguida, foi assessor da Dersa e presidente da Câmara Metropolitana de Transportes de São Paulo, aposentando-se em 1994. “Depois que SãoPaulo se tornou região metropolitana, a política ficou ainda mais determinante”, diz. Íon se refere à necessária interação entre prefeituras comandadas por adversários. “Ninguém quer pôr azeitona no pastel do outro.”

“São Paulo andou para trás no que diz respeito ao trânsito”, afirma Íon, que atribui a culpa ao aumento da frota e à reticência dos governantes em promover mudanças. “Estamos 50 anos atrasados e não vejo saída. Minha imaginação não vai tão longe”, diz. A frustração de perceber que perdeu a guerra o motivou, quem diria, a mudar de profissão. “Percebi que o homem é que é complicado e fui estudá-lo.” Aos 74 anos, virou estudante de psicologia e, em 2010, defendeu mestrado sobre psicologia positiva. A corrente, surgida nos Estados Unidos há menos de duas décadas, busca potencializar as qualidades de cada um. Entre as de Íon está a capacidade de ainda acreditar em uma cidade com menos barbeiragens. O começo pode ser este: consertar a cabeça do paulistano.

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